quinta-feira, 20 de novembro de 2014

E a representatividade, cadê?

    Antes de podermos falar de sapatão ou da nossa representatividade dentro de um movimento pelo direito de sexualidades não-hétero, precisamos contextualizar a situação das mulheres de uma forma geral. A sociedade estruturalmente foi feita pra oprimir, deslegitimar e privar as mulheres de direitos básicos como ir e vir, ter controle sobre o próprio corpo e dizer quem que devemos amar e de quem devemos desgostar. Decidem por nós que as outras meninas são nossas inimigas e que os meninos que puxam nossos cabelos gostam de nós, só não sabem lidar com esse sentimento. Além de toda problemática em criar competição entre as mulheres, cria uma ideia de que nós somos ruins, que nós merecemos sofrer porque o homem que nos maltrata nos ama.

    Durante minha vivência de vinte anos enquanto mulher cisgênera eu lembro de pouquíssimas mulheres que me dei ao luxo de confiar antes do feminismo. O amor, mesmo que fraternal, entre as mulheres é constantemente deslegitimado, duvidado, pisado ou fetichizado (ou tudo ao mesmo tempo). Ser mulher é ser dada como falsa, como interesseira, burra e um objeto de recreação que pode ser usado e logo depois descartado. Diante disso temos um quadro alarmante pras mulheres (héteros, bi, pan, assexuais, lésbicas e outras sexualidades) e a situação dentro do movimento por direito das sexualidades não-hétero é mais precária ainda.
 


    Homens cisgêneros gays pensam que estão isentos de serem misóginos apenas por serem gays. Mas a verdade é que não é raro dizerem que sentem nojo de vaginas, que mulheres são burras e nojentas. O discurso não varia muito de um homem gay pra um homem hétero e a misoginia é a mesma, só que a diferença é que talvez os gays tenham mais liberdade em expressar sua misoginia. A lesbofobia e a misoginia dentro do movimento é pesada e não poupa nenhuma mulher lésbica. Até mesmo os homens gays afeminados sofrem respingos de misoginia por se parecerem ou terem trejeitos considerados de mulher, mas, apesar deles sofrerem no momento, quem sofre sempre é a mulher.

    Finalmente chegamos aonde eu queria, então se uma mulher já é subjugada diariamente por apenas ser mulher, como ficam as sapatão dentro de um movimento não-hétero que é evidentemente misógino e machista (que é só um reflexo da sociedade)? Na verdade o lugar das mulheres no movimento é o mesmo que na sociedade: lugar nenhum. Nós não temos espaço de fala nem sobre nosso empoderamento, sobre amar nossos corpos, sobre nos amar. Como já disse, o amor entre mulheres não é aceito, é repudiado porque nós nos damos forças. Nós construímos a luta uma das outras e inspiramos uma às outras. Homens não querem mulheres que saibam da sua força e que reivindiquem seus espaços.

    Procurei no movimento não-hétero a aceitação que não achei na sociedade, mas lá só achei mais ódio por mim, mais apagamento e silenciamento. Tentei me empoderar, mas me puxavam pra baixo porque eu sou mulher e não mereço ter voz. O importante era o que o homem achava, o que o homem sofria e como íamos ter solução sobre o sofrimento do homem. Eu tenho consciência de que precisamos urgente da criminalização da homofobia, mas também sei que não podemos aceitar migalhas dos nossos direitos. Existem outras opressões além da homofobia e precisamos de espaço pra debater elas.

    Já não sei qual foi a primeira vez que fui silenciada no movimento não-hétero atual e sei que não posso criar esperanças pela última vez chegar logo. Quando nós falamos que queremos um espaço pra discutir e debater sobre questões que atingem as mulheres somos obrigadas a ouvir "por que vocês não criam um espaço privado pra vocês?" por um simples motivo: não somos obrigadas. Queremos ocupar o espaço que é nosso por direito. Queremos falar sobre aborto, sobre nosso corpo, sobre nosso amor no espaço não-hétero. Podemos ter espaço exclusivo, mas não podemos restringir nossos debates a esses espaços.    

    Eu demorei pra entender por que os homens queriam tanto que as mulheres criassem um grupo só pra elas, mas hoje eu vejo com clareza que eles não querem ler as verdades que falamos. Eles não querem saber que são opressores, não querem ter as falas problematizadas e não querem reconhecer seus privilégios enquanto homens. É muito mais fácil fingir que as mulheres não-hétero não existem se elas não estão lá pra te corrigir, se elas estão em um grupo exclusivo falando sobre o problema que as atinge. É mais fácil expulsar uma pessoa oprimida do que tentar desconstruir um comportamento enraizado. Desconstruir leva tempo, machuca, faz a gente ver o mundo de outra forma e nos faz reconhecer nossos privilégios.  
        
        Por mais difícil que seja resistir em grupos não-hétero que tem pouca ou nenhuma representatividade lésbica, é muito importante que as mulheres ocupem. É importante que quando uma mulher conseguir externalizar sua indignação ela seja acolhida. Uma mulher que consegue falar teve muito mais do que só "coragem" de falar. Essa mulher que conseguiu falar sofreu violências, sofreu abusos e se tornou forte com outras mulheres. Conseguiu se empoderar, conseguiu se inspirar em outras mulheres para poder falar. 
    
        Eu vejo uma revolução começando quando mulheres falam a primeira vez. É aterrorizante falar, você treme, gagueja, perde sua linha de pensamento, mas depois você pensa "como nunca fiz isso antes?" e já espera ansiosamente pela próxima vez. Acho que nunca vou me acostumar a falar ou a escrever e ser ouvida/lida. É uma sensação maravilhosa de ansiedade, nervosismo e liberdade. É incrível poder se sentir livre e falar alto. Poder gritar e saber que tem gente que concorda, gente que se sente melhor por você estar falando tudo aquilo e saber que tá começando uma revolução interna em cada pessoa que te escuta.

   
    Em macro eu sei que a representatividade lésbica não existe, mas nos pequenos grupos que participo, nas rodas de conversa de bar que eu vejo, existem mulheres se empoderando com blogs como Gorda e Sapatão ou vlogs como Canal das Bee e até mesmo com falas minhas. Eu fico emocionada e não consigo conter a esperança de que um dia essa representatividade vai chegar em várias outras mulheres. Um dia eu sei que as mulheres vão se sentir representadas, amadas e queridas independente do que aconteceu no passado. O caminho é longo e árduo, mas ninguém disse que era fácil ser mulher, muito menos ser sapatão.

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